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sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Eu também vou sonhar...

Li na revista Bons Fluídos um texto de Rubem Alves (www.rubemalves.com.br) sobre a poética da cidade e sobre o jardim cidade. Achei muito interessante, espero que vocês também se identifiquem com o texto.

Para além das casas e ruas, é nos labirintos urbanos que a humanidade acontece, com sua poesia e sentimento. É um imenso espelho em que podemos ver nosso rosto multiplicado muitas vezes.

Confesso minha dificuldade em perceber a beleza da cidade. A grande cidade me amedronta. Mas sei que o problema não está na cidade. Está nos meus olhos. Eles têm outros cenários como espelho. Meu espelho são as montanhas de Minas. Sinto a grande cidade como um labirinto. Os labirintos são construídos com a intenção de fazer perder os que neles entram. Quem entra num labirinto está perdido...
Há um trecho comovente no livro Vôo Noturno, de Antoine de Saint-Exupéry. Voando sozinho na noite escura, quando todos os contornos da Terra haviam desaparecido, ele via pequenas luzes na escuridão. Mas ele não via luzes. O que ele via eram casas, pessoas assentadas à beira do fogo, aquecendo-se, comendo, bebendo, conversando, amando. Aquelas pequenas luzes faziam com que a escuridão ficasse macia, ninho acolhedor. Muitas pessoas sabem que o labirinto urbano está cheio de ninhos humanos.
Quem me explicou foi o Gilberto Dimenstein, meu amigo. Falando sobre São Paulo a música da sua voz se alterou, ficou carinhosa. “A poesia dessa cidade não está na paisagem geográfica, mas na paisagem humana. Vivemos aqui o confronto entre o caos urbano e a riqueza humana.”
Percebi logo que ele via o que eu não via. Lembrei-me do Pequeno Príncipe: “O deserto é belo porque em algum lugar ele esconde uma fonte”. A cidade é boa, nela, em algum lugar, se esconde a beleza.
Uma casa, para ser boa, tem de ter a cara do dono.
Uma cidade, para ser boa, tem de ter a cara, ou as caras, dos que moram nela.
Há pessoas que se vêem refletidas no caos urbano. Luiz Carlos Lisboa tem um texto comovente sobre esse sentimento: “Nas grandes cidades, onde o silêncio às vezes é possível nas madrugadas, há mais para ver e aprender do que geralmente se pensa. Quando muitos homens se reúnem em torno de interesses comuns, o que está em suas almas vem freqüentemente para fora e dá forma aos objetos e às pessoas. A cidade grande é um imenso espelho, em que podemos ver nossos próprios rostos multiplicados muitas vezes. Quando nos servimos das cidades para entender o que somos, elas se tornam abençoadas”.
Os que têm medo sonham. Porque tenho medo da cidade grande onde me perco eu sonho com cidade grande que posso amar. É uma utopia. Não existe. Mas não tem importância. Valéry perguntou: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?” O que não existe socorre. Oscar Wilde, que sabia do socorro das coisas que não existem, escreveu: “Um mapa do mundo que não inclua o país da Utopia não merece nem mesmo um olhar, pois ignora o único país ao qual a Humanidade constantemente chega. E quando a Humanidade lá atraca, fica alerta, e levanta novamente as âncoras ao vislumbrar terra melhor...”
A tradição semita, nascida de nômades que perambulavam pelo deserto, sonhou com jardins. Quem perambula por desertos onde o sol queima e só há areia e pedras tem de sonhar com água fresca e árvores. Sua imagem mais forte é o paraíso. Deus é jardineiro. O universo é belo porque nele Deus plantou um jardim...
Os gregos sonharam um outro sonho, a cidade, a pólis, um lugar belo, limpo, protegido, onde se podia viver sem medo e os homens podiam gozar felicidade do lazer e do pensamento nas praças públicas. Os cidadãos se educavam na ágora. Era lá que Sócrates “excursionava”, fazendo os homens pensarem com suas perguntas. A cidade era o lugar onde acontecia a “humanidade”. Tanto assim que definiram o homem como o zoon politikon, o animal que vive na cidade.
Eu juntei essas duas tradições, o jardim e a cidade, e disse que “política é a arte da jardinagem aplicada às coisas públicas”. As cidades devem ser belas como os jardins. As cidades devem ser jardins. Foi assim que aconteceu na Inglaterra do século 19, no auge do horror do capitalismo. Apareceram os sonhadores utópicos. Alguns empresários, movidos por ideais socialistas, imaginaram que seria possível construir uma cidade que fosse, a um tempo, bela, acolhedora, mansa – cidade em harmonia com a natureza, em que o capital e o trabalho cooperassem, em que as fábricas e as casas dos trabalhadores formassem um espaço único, como se fosse um jardim. Os caminhos que ligavam as fábricas às casas eram longos gramados, ladeados por regatos. Por eles caminhavam os operários pela manhã, ao ir para o trabalho, e à tarde, ao voltar para a casa. E as casas de moradia, todas elas, tinham os seus jardins com flores e frutos. Lá ainda estão os gramados, os caminhos, as casas.
Mudando-se para São Paulo os ingleses trouxeram consigo essa memória do ideal de uma “cidade-jardim”, combinação da tradição semita com a tradição grega. E se perguntaram: será que o ideal da cidade-jardim pode ser construído aqui? E ainda hoje se fala “cidade-jardim”, como memória dessa utopia esquecida que pode ser ressuscitada.
Plantar um jardim é coisa fácil. Basta que uma pessoa queira. Pode-se plantar um pequeno jardim na varanda de um apartamento. Mas para plantar um jardim-cidade, para isso é preciso que muitos sonhem com um jardim. É preciso um povo sonhador. Porque um povo, como disse santo Agostinho, é um bando de pessoas racionais unidas por um mesmo sonho.


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